Criar “bolhas” livres de telemóvel na vida de família
6 momentos do quotidiano que merecem uma especial atenção
Debrucei-me recentemente sobre o debate sobre telemóveis e adolescentes, embora este tema seja algo longínquo para mim pois a minha filha mais velha ainda só tem 6 anos.
Ouvi nomeadamente o psicólogo e investigador norte-americano Jonathan Haidt defender, neste episódio do podcast da Dr Becky, que não se deveria oferecer smartphones antes dos 14-15 anos; que as escolas deveriam ser zonas livres de smartphones; e que o acesso às redes sociais só deveria ser permitido a partir dos 16 anos.
Não tenho, ainda, opinião formada sobre toda esta temática; e, à velocidade a que estas tecnologias avançam, as questões que se irão colocar quando os meus filhos chegarem à adolescência serão provavelmente já bem diferentes das actuais.
À data, os únicos utilizadores de telemóveis em nossa casa são os adultos que cá moram, a saber, o meu marido e eu. E por isso as questões que me coloco são:
Qual é a cultura dos telemóveis que quero transmitir aos meus filhos pequenos?
Qual é o lugar deste objecto na nossa família?
Como o utilizamos quando estamos juntos?
Primeiro, porque essa é a base em cima da qual se colocará, vindo o dia, a questão de saber em que condições os nossos filhos poderão ter acesso a um telemóvel (ou seja qual for a tecnologia em voga nessa altura).
Segundo, porque a forma como o utilizamos tem um impacto concreto nas nossas relações AGORA.
E, sobre isso, a minha opinião é que uma utilização excessiva, constante e não-reflectida do telemóvel diante dos nossos filhos é nociva para a relação que estamos a formar com eles (I), e que deve ser feita alguma contenção em torno da sua utilização em família (II).
Magda Gerber dizia: “Quando pegas no bebé, pega-lhe não só com o teu corpo, mas com a tua mente e o teu coração.”
Um ideal nem sempre alcançável, mas que gosto de manter presente.
Fotografia de Ângela Azevedo
1. O exemplo que damos e o impacto na relação
“Faz o que eu digo mas não o que eu faço” é uma forma possível de educar os filhos, mas está bastante comprovado que não é a mais eficaz. Já toda a gente sabe que as crianças IMITAM os adultos, que as crianças fazem e valorizam aquilo que os pais fazem e valorizam.
“Se [o cuidador principal, seja pai, mãe, babysitter, avó...] estiver sempre a olhar para um ecrã, a criança irá também querer um ecrã”, explica Philippa Perry em O Livro Que Gostaria Que Os Seus Pais Tivessem Lido.
Acresce o impacto na relação de uma utilização excessiva e não-reflectida do telemóvel por parte dos adultos na presença de bebés e crianças pequenas, cujo cérebro e personalidade estão em plena formação.
Numa recente entrevista no podcast Unruffled de Janet Lansbury, o Dr Gabor Maté comentava: “Estou constantemente a ver pais ao telemóvel enquanto empurram o filho no carrinho. Que mensagem damos à criança quando estamos ausentes na sua presença? Não é que eu recomende abdicarmos dos nossos computadores ou telemóveis; trata-se, sim, de não deixar que essas tecnologias interrompam a minha relação e a minha interacção com a criança.”
Como será a experiência do bebé cujo cuidador de repente se “ausenta” (embora continue na sua presença física), e fica tão absorto no seu telemóvel que não vê/ouve/reconhece os sinais dados pelo bebé?
Talvez o mais próximo dessa situação seja o que sucede na Still Face Experiment de Ed Tronick, em que foi estudado o transtorno do bebé quando mãe adopta uma face inexpressiva e ausente diante dele.
2. Seis momentos em que é vantajoso ignorar o nosso telemóvel
Reconhecendo em simultâneo que 1) uma utilização excessiva do telemóvel diante do bebé e das crianças não é optimal, e que 2) os telemóveis fazem parte integral da nossa vida, uma opção pode passar por simplesmente reduzir a sua utilização nalguns momentos e espaços dedicados à vida em família.
Há várias alturas em que é especialmente vantajoso para a relação entre pais e filhos ter o telefone fora do nosso alcance, como por exemplo:
Os cuidados
Os cuidados ao bebé/crianças pequenas são momentos de intimidade dos quais o telemóvel não deve fazer parte.
Magda Gerber, fundadora do RIE®, dizia aos pais, ainda muito antes da era dos telemóveis: “Desliga o telefone antes de alimentar, dar banho, ou mudar a fralda do teu bébé, e diz-lhe: “Vou desligar o telefone para que ninguém nos perturbe, porque agora quero estar mesmo só contigo”.”
Se esta recomendação já era radical nos anos 1970/80, quanto mais nos dias que correm! Mas era o quão Magda Gerber acreditava no respeito que os bebés merecem por parte dos seus cuidadores, especialmente durante momentos tão intímos como os dos cuidados.
Uma forma de nos aproximarmos da experiência do bebé durante os cuidados é recordar a última vez que fomos sujeitos a um tratamento médico. Como nos sentiríamos se o médico estivesse a tratar de nós enquanto escrevia mensagens ou consultava as redes sociais no telemóvel?
“Os bebés nascem à nossa procura (...) Apenas uma coisa é mais importante para um bebé do que comida: contacto humano. Os bebés nascem totalmente motivados para participar em interacções sociais.” Dr Jeree H. Pawl
Fotografia de Ângela Azevedo
As brincadeiras
Se aceitamos brincar com os nossos filhos, então que o façamos com presença e não distraidamente, com um bloco de Lego numa mão e o telemóvel na outra (que foi o que eu fiz durante algum tempo até perceber que isso prejudicava, mais do que beneficiava, a relação com a minha filha).
“Se estás fisicamente próximo do teu filho, mas não vês as suas tentativas de comunicar contigo porque estás ao telefone ou no computador, isso irá perturba-lo. Pensa em como te sentes quando sais com um amigo e ele passa muito do tempo que estão juntos ao telefone. Irritante, não é? Como tu já formaste grande parte da tua personalidade, isso não te irá fazer dano, embora não ajude à relação. Mas o teu filho ainda está a construir a sua personalidade e a criar os hábitos da sua relação contigo (...)” Philippa Perry em O Livro Que Gostaria Que Os Seus Pais Tivessem Lido
É muito mais saudável para a relação recusar um convite para brincar, do que aceita-lo contrariado, e acabar por estar “ausente” nesse momento.
10 minutos de atenção plena fazem melhor à relação do que 1h de multitasking e dispersão.
Fotografia de Ângela Azevedo
As transições
Os momentos de transição como a saída para a creche/escola, o regresso a casa no final do dia, a rotina da noite são também momentos delicados de separação ou reencontro, em que os bebés/crianças precisam da nossa atenção exclusiva (mesmo quando vão no banco de trás do carro no regresso da escola, que não respondem às nossas perguntas e parecem indiferentes à nossa presença).
Os momentos partilhados
As refeições tomadas em conjunto, assim como as saídas em família, são momentos em que podemos privilegiar a relação com aqueles que estão na nossa presença mais do que o contacto com o mundo exterior.
Pessoalmente procuro haja pelo menos 1 período no fim de semana em que deixo o telemóvel em casa, para garantir um maior foco no momento presente. Temos também por regra nao trazer os telemóveis para a mesa das refeições.
Actividades das crianças
Se vamos fazer uma actividade com a criança - seja ir ao parque, assistir a um concerto, fazer uma sessão de observação como as que eu organizo no Porto -, aproveitemos para lhe dedicar esse momento em pleno, e dar-lhe a nossa atenção exclusiva.
Em casa
Em casa ajuda bastante não andar em casa com o telemóvel no bolso. Só o facto de não estar no nosso alcance já reduz muito a tentação de lhe mexer por automatismo.
Pessoalmente tenho um sítio na estante da sala onde guardo o telemóvel, e procuro usa-lo só na sala e na cozinha. Raramente o levo para o meu quarto ou para o quarto dos meus filhos.
Uma nota sobre as fotografias e videos:
Reconhecer que, mesmo quando estamos “só” a tirar fotografias, temos um objecto interposto entre nós e os nossos filhos, o que adultera a relação e a qualidade do momento presente.
Acresce que, fotografar com o telemóvel, resulta muitas vezes em mais manipulações no telemóvel.
Por isso talvez valha a pena considerar “bolhas” livres de fotografias também? Fica a ideia.
Despeço-me com mais uma citação de Magda Gerber para reflexão:
“Se dás apenas metade da tua atenção o tempo todo, a tua criança nunca tem a tua atenção plena, e fica sempre sedenta da outra metade.”
Motivação para apostar mais na qualidade do tempo passado juntos?
Até breve!